As Imagens e as Palavras

Questiono-me, há muito, sobre os diferentes tipos de relações que as palavras entretecem com as imagens e vice-versa.
Encanta-me o facto que um grupo de palavras possa fazer surgir imediatamente uma imagem como as dos haïkaïs.
A que momento da escrita ou da leitura isso acontece?
Quando desenho, a que momento do movimento do contorno surge a figura que traço?
Neste haïku de Bonchô, todas as palavras se conjugam para construir a totalidade da imagem. Quanto ao movimento suposto dos elementos da cena, esses dependem mais da imaginação de cada leitor:

Na bruma
A raposa deixa brincar
Os seus filhos

No seu poema ortónimo « Três ciprestes » Fernando Pessoa cria ele mesmo o movimento das coisas, da luz, das modificações através duma associação de palavras tão singular como surpreendente:

Três ciprestes, e a lua por detrás do do meio…
Invisível e halo em torno a ele
E os outros dois batidos de lado p’lo luar…
Branco o seu lado e mais negro que negros do atro…
Uma brisa através da folhagem… Veio aquele
Luar tornar-se mais cousa nua…
Mas o vulto-sensação dos três ciprestes fica neutro
Imóvel, três, àquem do luar…
E ouvia-se a hora toda chegar e estacar…

Um outro poema ortónimo de Pessoa me intriga ainda mais:

Passa um vulto entre as árvores…
Segue-o a sombra do vulto entre as árvores…
E o vulto é a floresta em si que passa entre as árvores…
(Fogos-fátuos sobre a sombra entre as árvores)
Mas não há arvores: há só entre-as-árvores.

Inversamente aos haïkaïs, que desenham as imagens dos factos com uma exactidão imediata, parece-me evidente que Pessoa traça neste dois poemas imagens foscas, viráveis, indecisas que aparecem e que desaparecem.
No poema « Três ciprestes » o poeta começa por fazer surgir três árvores. Depois pinta uma lua por detrás da do meio o que modifica o conjunto. Em seguida, ilumina o invisível com um halo que ele alastra às duas outras. A frase « Branco o seu lado e mais negro que negros do atro… », duplamente dramática e enigmática, percepciono-a como uma suspensão cujo objectivo consiste em criar uma imagem estática que irá contrastar com a imagem-movimento que lhe sucede: « Uma brisa através da folhagem… » antes de nomear e significar expressamente a imobilidade: « Imóvel, três, àquem do luar… », fazer surgir o tempo e estacá-lo.
No poema « Passa um vulto entre as árvores… », Pessoa desenha as presença privilegiando as omissões, os intervalos assim como as cavidades das coisas ditas.
À maneira dos artistas chineses, Pessoa pinta o pleno e o vazio.
Os movimentos do que passa (a figura), do que segue (a sombra) do que vibra (fogos-fátuos) também não existem.
Existem somente as ausências terrivelmente visíveis através das palavras.

As palavras criam imagens e as imagens suscitam palavras na minha cabeça e até é possível que elas surjam também na cabeça dos outros, mas porquê?
Quando uma imagem surge duma palavra, será que surge do sentido dela ou da articulação da frase?
Se eu fosse « saussuriano » poria a questão nestes termos: a imagem nasce do significado ou do significante?
Pouco importa…

Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar.
E as árvores soturnas não se mexem.
Estio!
Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos, estampadas…
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem de manhã.
A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida.
Aqui, uma janela discreta que se abre, preta, cega.
Ali outra fechada.
E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se…
E eu, ai eu! Prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!

Quando leio os três primeiros versos deste belo poema de Irene Lisboa, não posso impedir o meu cérebro de remeter de novo o meu pensamento para os haïkaïs japoneses.

Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar.
E as árvores soturnas não se mexem.
Estio!

Eles oferecem ao meu olhar uma imagem perfeita, exacta, do lugar, do momento e dos diversos movimentos que a animam. A composição da imagem se prossegue com a frase: « Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos, estampadas… ».
Esta maneira de dizer o que não se vê, contudo mostrando, fascina-me.
Mais fascinante ainda é a conclusão desta frase onde tudo se concentre abruptamente na palavra « estampadas », palavra carregada de referência picturais.
Irene Lisboa prossegue o seu poema com palavras que retratam a invisibilidade daqueles e daquelas que se manifestam através de índices visíveis; a sucessão de janelas que se abrem e que se fecham que introduzem o ritmo do tempo que passa.
O fim do poema revela-me o estado de espírito da poetisa que originou à escrita-desenho deste magnifico poema.
Digo escrita-desenho porque prefiro a significação concisa da palavra « desenho » à palavra « pintura » que remete imediatamente o meu pensamento para uma pluralidade de técnicas que tornam, a meus olhos, esta palavra confusa e imprecisa.

Cada vez que leio um poema de Irene Lisboa, vejo imagens de diferentes naturezas.
Algumas vozes poderiam dizer que eu as vejo por doença.
Se tal é o caso, amo a minha doença e imploro a Deus, aos Anjos e a todos os seus Santos para que eles continuem a me infligir uma tal enfermidade.

Uma outra poetisa mergulha-me num estado profundo de iluminação.
Trata-se de Florbela Espanca :

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!…

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!…

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

Ao ler o primeiro verso deste poema, recordei-me de um outro texto, doutro escritor, José Gomes Ferreira, « O Sabor das Trevas » que começa assim:

O despertador retiniu com fúria luminosa na mesinha de cabeceira e o senhor Retrós enfiou os pés nas chinelas atarantadas. A seguir, no laboratório da casa de banho, rasgou o peito com um bisturi fantástico e substituiu o coração pelo despertador. Isto depois de regulá-lo convenientemente para que, de meia em meia hora, com retoques estrídulos, lhe recordasse que existia.

O verso de início do poema de Florbela Espanca « Tirar dentro do peito a Emoção » e a frase « … rasgou o peito com um bisturi fantástico e substituiu o coração pelo despertador. » de José Gomes Ferreira, criam na minha imaginação imagem que abrem a porta ao onirismo.
Bem entendido, a emoção suscitada pelo poema de Florbela Espanca não se confunde com o sorriso que me vem aos lábios quando desfruto a ironia do texto de José Gomes Ferreira.
Acontece-me, por vezes, de reunir textos par uso pessoal, a fim de sonhar e fecundar com outras imagens o meu espírito.
Foi o que fiz quando procedi à montagem dos três últimos versos das três primeiras estrofes do poema de Florbela Espanca :

Um punhado de cinza esparso ao vento!…
O pó, o nada, o sonho dum momento!…
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Depois de o ter feito, dei-me conta que o sentido que nasce deste conjunto de versos poderia tornar-se o meu credo por ele tanto se parecer com a arte que pratico.

As coincidências não existem, tão pouco o destino.
Existem somente ligações e compartilhamentos.
Agradeço a Natália Correia de compartilhar comigo os seus gostos e as suas crenças, em todos pontos idênticos aos meus.
Os seus gostos e as suas crenças, expressos através das palavras deste seu poema, despertaram em mim uma vontade impetuosa de traduzir numa pluralidade simultânea de movimentos as imagens que surgiram dentro da minha cabeça.

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

José-Manuel Xavier
Argenton sur Creuse 2022

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