O PRAZER DO MOVIMENTO

Vou começar por dizer o seguinte:

Agora, só faço coisas que me dão prazer e que ninguém me pediu.

O « Prazer do movimento-II » que foi mostrado no passado dia 11 de Outubro na Cinemateca de Lisboa é fruto desta atitude.

O « Prazer do movimento-II » é constituído por oito cadernos onde escrevi diferentes tipos de movimentos. 

Digo « escrever » por que estabeleço uma diferença entre « escrever » o movimento e « compor » o movimento. 

Se alguém me perguntasse porque é que eu escrevo movimentos sobre as folhas de um caderno eu responderia: por que me dá prazer, mas não só. É também porque gosto de esconder movimentos dentro de um caderno ou de um livro e depois de os oferecer a alguém enquanto objecto único.

Dá-me também prazer ver o novo proprietário do objecto que foi meu, ficar surpreendido pelo facto de que o movimento se manifesta cada vez que ele folheia as páginas do caderno. 

O procedimento e os ingredientes que uso para criar este tipo de objectos são os seguintes:

Um caderno, pincéis, canetas, aparos de todas as espécie e feitios, tinta-da-china e uma folha de papel mata-borrão.

Começo por traçar, de preferência, linhas, traços, pontos, arabescos e texturas sobre a última página do caderno. 

Para secar rapidamente a tinta utilizo uma folha de papel mata-borrão.

Depois olho fixamente para a imagem realizada para a memorizar, mas também para a interrogar: Quem és? Para onde vais? Em que é que te vais transformar? De que maneira? A que velocidade?

Depois deixo cair a página seguinte do caderno sobre esta imagem e começo a desenhar outra que imediatamente começa a ter relações com a precedente.

Será que deduzo esta segunda imagem da primeira?

Talvez, mas nem sempre.

Pergunto-me então: Para onde vou?

Respondo-me: Não sei nem quero saber.

Porque todas a imagens que vou traçando sucessivamente representam para mim um caminho desconhecido que vou descobrindo passo a passo e que, no final, me deve surpreender. 

Quando chego ao fim das páginas do caderno, a folha de papel mata-borrão encheu-se de arabesco que me encantam, porque estes desenhos do acaso representam para mim rastos de movimentos que me ensinam e sugerem milhares de coisas que me dão prazer.  

Para fazer este género de coisas é necessário, à nascente, pensar muito e desenhar muito sobre os mais variados suportes para descobrir novos caminhos, novos modos de representação, novas relações entre as imagens. 

Há já uns tempos, compus « 6 ensaios sobre o movimento ». 

Creio que estes 6 ensaios são exemplares da minha maneira de compor movimentos.

Devido à concisão de cada um deles, também poderia ter-lhes dado o título de « 6 haikai visuais ».  

Deste trabalho, existem duas versões. 

Na primeira versão, os 6 ensaios destinavam-se a serem exibidos numa galeria de arte sobre 6 ecrãs dispostos verticalmente.

Na segunda versão, destinavam-se a serem reunidos sob a forma de uma continuidade prevista para uma projecção cinematográfica.

Dado o facto dos «6 ensaios sobre o movimento» terem sido imaginados, pensados e elaborados para serem expostos como objectos de arte, por esta razão, os 6 ensaios são desprovidos de som. 

Contudo, três dos seis ensaios foram-me inspirados por músicas que tem o condão de suscitar, na minha imaginação, movimentos que me surpreendem. 

O primeiro dos seis ensaios foi-me inspirado por alguns aspectos da obra para piano de Ravel que me encantam; a fluidez e o brilho dos seus múltiplos motivos cintilantes que se se misturam como perfumes. 

O segundo foi-me inspirado pela décima sonata de Scriabine, especialmente pela dinâmica sonora que começa ao trigésimo nono compasso.

O quinto ensaio foi-me inspirado pela peça para cravo «Les Maillotins» de François Couperin, que soa como uma trama granulosa e seca contudo saltitante, que me fez pensar numa escrita rápida feita à pena e cheia de emendas.

Como é que a peça para piano de Ravel « Une barque sur l’Ocean » se transformou numa « pauta de 15 linhas sarapintadas por 15 manchas que as percorrem da esquerda para a direita e da direita para a esquerda?

Como é que a sonata de Scriabine se transformou numa quase caligrafia japonesa?

Como é que «Les Maillotins» se transformaram no manuscrito de um poema agitado?

Tudo isto impõe que eu fale dos caminhos que interligam as minhas fontes de inspiração às coisas em movimento.

O que é que me inspira e que me leva a fazer tudo o que faço?

Os movimentos da Natureza, do céu, das nuvens, do vento, da água, a mudança da luz da aurora ao poente, a morfologia das pedras, a textura dos tecidos, o movimento dos pássaros, a viscosidade dos movimento dos caracóis, a dança das moscas, o andar das formigas, a elasticidade dos bichos da seda, o canto dos grilos. 

A seguir vem a poesia, feminina de preferência: Irene Lisboa, Natália Correia, Maria Teresa Horta, Florbela Espanca, entre outras…

Florbela Espanca resumiu num poema do « Livro das Mágoas » um desejo de criar com o qual me identifico totalement:

Tirar do peito a Emoção,

A lúcida Verdade, o Sentimento!

E ser, depois de vir do coração,

Um punhado de cinza esparso ao vento.

Depois da poesia vem o mundo dos sons e da música que sempre invejei por serem movimentos desprovidos do peso das imagens.

Por fim, um punhado de artistas das quais destaco a grande pintora Tōkō Shinoda que faleceu recentemente com 108 anos, que pintou até ao fim da sua vida e que disse uma coisa que me comove profundamente: 

« Pintar uma linha é como um sonho ».

O meu gosto pelos traços, pontos, linhas, manchas encontra-se permanentemente expresso em tudo o que faço e que fiz.

Diria mesmo que os traços, os pontos, as linhas e as manchas são os personagens do romance da minha vida.

As manchas que correm sob as 15 linhas da pauta do primeiro ensaio dos « 6 ensaios sobre o movimento » são a minha maneira de evocar as múltiplas reflexões cintilantes que se encadeiam e se misturam à superfície das águas.

Foi busca-las a contemplação dos lagos, dos rios e dos riachos e bem entendido à fluidez dos movimentos que percorrem todo as teclas da peça para piano de Ravel, « Une barque sur l’océan » (Um barco sobre o Oceano).

À poesia, foi buscar a disposição gráfica das figuras, inscrevendo-as num espaço de representação vertical, idêntico à página de um livro a fim de fugir à mais que enfadonha horizontalidade dos ecrãs. 

Através da leitura da correspondência de Scriabine, dei-me conta que compartilho com este grande compositor o gosto da metáfora.    

Numa carta de 1913, Scriabine escreveu: Os insectos nasceram do sol que os alimenta. Eles são os beijos do sol, como a minha décima sonata que é uma sonata de insectos. O mundo aparece-nos como um todo quando consideramos as coisas desta maneira,

Bem que inspirado pela décima sonata, seria vão procurar insectos no segundo ensaio dos « 6 ensaios sobre o movimento » assim como na décima sonata deste grande compositor.

As palavras de Scriabine são metafóricas.

Qualquer criação que se baseie numa fonte de inspiração sonora deveria considerar este modo de linguagem. 

O segundo ensaio dos «6 ensaios sobre o movimento» inspira-se de dois momentos fulgurantes contidos na décima sonata: o acorde arpejado, seguido de um trilo, do compasso 34 e da exposição do tema do compasso 39 que reveste o aspecto agitado de uma cascata de notas (a partitura indica, alias, no início deste, com emoção).

Com que alquimia da imaginação transformei um acordo arpejado seguido de um trilo num arabesco que se quebra em dois? E com que fantasia da mente a exposição de um tema agitado se pode tornar numa polifonia de figuras metafóricas que atravessam, horizontalmente, espaço de representação?

Esta tipo de perguntas deveriam nos levar a reflectir sobre dois temas: como percepcionamos o movimento e como o transformamos?

Quando alguém se entrega, como eu, à composição de movimentos ilusórios, curtos, concisos, destinadas a serem mostrados como objectos de arte, a capacidade de experimentar o movimento como outros experimentam emoções ou sentimentos é sempre bem-vinda.

Para isso, é preciso treinar constantemente o cérebro a não considerar o movimento como um atributo das imagens, mas sim como fundamento das imagens e perder o hábito infeliz de percepciona-lo linearmente. 

O movimento deve surgir como um todo, como uma entidade, tal como diz Scriabine na carta de 1913, constituída por uma multiplicidade de caos simultâneos.

A frase «Os insectos nasceram do sol que os alimenta» traduzida em linguagem de ilusionista torna-se: «as figuras nascem do movimento que as alimenta».

Foi sob estes auspícios que procedi à composição do segundo dos «6 ensaios sobre o movimento».

Recordo-me de três coisas. 

Por um feitiço que eu não sei explicar, os dois movimentos sonoros fulgurantes do início da décima sonata de Scriabine sempre despertaram na minha imaginação uma desordem de imagens que, como todas as imagens mentais em geral, desvanecem-se sem nunca desaparecerem.

Depois vem o desejo constante em mi, de ver aparecer, no branco das páginas de um caderno, de um livro ou de uma folha de papel, movimentos de traços dançantes, como se uma mão invisível os traçasse do outro lado da imagem.

Por fim, ter o prazer de os ver evoluir como volutas caprichosas até eles darem lugar a algo de inesperado, de surpreendente abrindo-se, rompendo-se, desmoronam-se, aparecendo e desaparecendo.

Estes movimentos de imagens tenho-os em mim há décadas, talvez mesmo desde sempre, sem saber explicar porquê. 

Eles nasceram da minha percepção dos movimentos do Mundo e minha percepção do Mundo é condicionada por eles. 

Como sei que são meus e que estão dentro de mim? 

Porque eles fazem parte da galeria de figuras recorrentes que eu desenho quase que automaticamente. 

A dada altura, sempre imprevisível, os movimentos sem imagem de Scriabine (ou de outros) entram em sintonia com os meus, unem-se, conectam-se, como para celebrar um encontro.

Nasce então o desejo de compor algo que corresponda, como diz Florbela Espanca, à lúcida Verdade, ao Sentimento.

Começa então o meu labor que consiste em transformar os movimentos dos outros e das coisas, num movimento ilusório que me pertence. 

Para fazer isso, preciso de desenhar. 

Desenhar o quê? 

O que vem à superfície, ao acaso, desenhos radicalmente diferente das coisas que me inspiram e que me rodeiam, mas que as evocam, como nos sonhos, onde rostos desconhecidos encobrem os de seres familiares.

Quando se adquire a capacidade de representar um movimento ilusório na sua globalidade, através de uma imagem mental, de avaliar o seu volume, o seu peso, a sua dinâmica e a sua duração, o posicionamento das fases-etapas faz-se de forma de tal maneira intuitiva que se torna difícil, tempos depois, recordar qual foi a primeira a ser desenhada. 

Isto mostra como os métodos de escrita e de composição de movimentos se unem por vezes e se confundem.

No Segundo ensaio dos « 6 ensaios sobre o movimento », o movimento das figuras que se sucedem após que o arabesco vertical se tenha dividido em dois, foi para mim um momento de pura jubilação. 

O natural com que estas imagens passam agora diante dos meus olhos quase me faz esquecer a sua singular disparidade. 

Este «natural» deve-se, por um lado, às figuras de ligação (as fases complementares) que asseguram a ligação entre as fases-etapas e as fases-itinerantes e, por outro, a um princípio simples que poderia resumir da seguinte maneira: quanto mais díspares e incoerentes forem as formas que se sucedem, mais improvisados deverão ser os seus movimentos de deslocação. 

Mais do que nunca, as relações de forma, de proporções, de direcção, de orientação, de distâncias, de quantidade, de semelhanças entre as figuras desempenham aqui um papel essencial.

Nesta polifonia de figuras metamórficas, que atravessam o espaço de representação em quatro segundos e meio, conjugam-se três movimentos: o que orquestra o conjunto, o de cada um dos cinco corredores onde as figuras se deslocam e se transformam e o das próprias figuras.

Todas essas figuras foram desenhadas e pintadas directamente com um pincel e com tinta-da-china, sem qualquer traçado preliminar a lápis.

Como a pintora Tōkō Shinoda, a minha paixão pela trilogia pincel, tinta, papel é imensa.

O facto de ter que pintar as fases intermediárias entre as fases-etapas e as fases-itinerantes já pintadas a preto exige, como já mencionado, o treino dos meus olhos para que o meu cérebro possa ler, nas diferenças e desvios que separam as figuras, as trajectórias que os movimentos ilusórios percorrem sem que eu me veja obrigado para isso a observá-los por transparência. 

Este facto, longe de representar uma dificuldade, permite uma maior margem de improvisação, portanto de liberdade, relativamente à transformação das figuras.

O quinto dos «6 ensaios sobre o movimento» foi-me inspirado pela peça para cravo «Les Maillotins» de François Couperin, mas não só.

Veio justapor-se ao aspecto alegre e saltitante desta música o meu gosto pela estética dos manuscritos e por tudo o que eles contêm: escritas, garatujas, acidentes, manchas, anotações, desenhos, rabiscos e muitas outras coisas, assim como minha profunda perplexidade perante a sonoridade das cordas arranhadas dos cravos sobre os quais as peças de Couperin são tocadas. 

Todas essas dinâmicas, todas estas substâncias sonoras reuniram-se na minha cabeça para me ajudar a compor este quinto exercício que, claro, nada tem a ver com isso. 

Penso que o processo que utilizei e que vos vou descrever é exemplar da forma de como eu faço estas coisas.  

Comecei por escrever um poema numa língua que não existe.

Como se escreve um poema numa língua que não existe? 

Escrevendo letras, agrupando-as de modo a que formem palavras que não significam nada mas que soam bem. Não podem imaginar como é agradável fazer este tipo de coisas; abstrair-me da tirania da compreensão, que felicidade!

No entanto, para que o poema se pareça com um poema, é necessário garantir que o seu arranjo tipográfico siga os moldes usuais.

Escrevi assim cerca de vinte poemas «abstractos». 

Depois de imprimir a minha colecção de 20 poemas em folhas de papel A4, juntei-as e folhei-as para verificar os efeitos que as diferenças entre cada poema causavam. 

O resultado foi que o poema se agitava mais que desejado.

Foi então aí que os « Maillotins » de François Couperin me vieram à cabeça, obstinadamente. 

Porquê? 

Pensando melhor, talvez o quinto exercício dos «6 ensaios sobre o movimento» seja apenas uma pesquisa sobre as relações de substância entre os movimentos sonoros e os movimentos das imagens que sempre me intrigaram. 

Verdade é que esta substância, inoculada na minha mente desde há muito, despertada pela poética de uma língua que não existe, provocou o meu desejo de criar, uma vez mais, movimentos de granulação secos e ásperos, semelhantes às múltiplas correcções e emendas de um texto manuscrito. 

A fim de amplificar estes efeitos, decidi ordenar aleatoriamente as fases do movimento. 

O resultado é um disparate que muito me agrada.

Os exemplos retirados destes quatro ensaios sobre o movimento demonstram, talvez, que a composição de ilusões é um processo de transformações onde todos os elementos visuais da ilusão dependem das propriedades estéticas do movimento.

São quatro, as propriedades estéticas do movimento: trajectória, duração, velocidade e dinâmica.

As propriedades estéticas do movimento conectam o tempo e o espaço, contudo, sem esquecer que o tempo de uma ilusão é ilusão e que a palavra pomposa « espaço » é apenas uma parte limitada da superfície de um suporte escolhido para representar as fases duma ilusão.

Um, talvez dois anos mais tarde, já não me recordo bem, acrescentei mais um ensaio aos 6 precedentes para prestar homenagem a um artista que admiro, Jackson Pollock que vos vou agora mostrar.

Por fim, vou vos explicar a razão de ser do ultracurto « Mi-Fa ». 

« Mi-Fa » é primeiro duma série de 32 movimentos de figuras que ainda não tive tempo de realizar.

« Mi-Fa » são as duas primeira notas tocas à oitava da sonata n° 32 Opus 111 de Beethoven.

Tenho a intenção de realizar, aos poucos e poucos, os primeiros compassos das restantes 31 sonatas deste grande Mestre.

Será que vou viver o tempo suficiente para os realizar?

Oxalá…  

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