Armando Servais Tiago – Comentários

Não passa um dia sem que eu pense no meu mestre e amigo, Armando Servais Tiago.
Sinto terrivelmente a sua falta.
No dia 8 de Julho de 2010, tive uma entrevista com ele que foi gravada.
Relato aqui os seus comentários a propósito das suas actividades nas áreas da imagem, do movimento, do desenho, da poesia e da música, à atenção de todos os que não tiveram a oportunidade, como eu, de o conhecer.

Sobre a imagem e o movimento

Eu comecei a conviver com as imagens muito cedo, ainda muito criança, na primeira infância e então o meu convívio ali era pura e simplesmente imaginação e mão, desenhar imediatamente aquilo que eu imaginava. Procurava como que ilustrar aquilo que pensava.
Mais tarde, passou a ficar ligado também ao conteúdo duma narração porque para mim era difícil estar a imaginar imagens sem haver um conteúdo que decorria e que informava por assim dizer tudo o que eu pensava.
Mais tarde começou também a entrar, digamos, nessa « escrita » desses sinais que nasciam da minha mão, uma relação que tinha muito que ver com o movimento.
Depois pareceu-me pouco ver imagens fixas.
Comecei então a imaginar imagens que teriam movimento.
De início era um movimento subjectivo, completamente imaginado.
Comecei justamente a imaginar imagens que teriam um movimento autónomo e a tentar dar-lhes esse movimento, do ponto de vista mecânico.
Só mais tarde é que comecei a dar um maior significado, por assim dizer, à movimentação das imagens que eu criava.
Procurava conseguir por em movimento uma imagem, um personagem ou digamos, o aspecto pictórico duma ideia.
Depois, para abreviar, após essa primeira exigência quanto aquilo que eu via, pensei: como ei de atribuir o movimento a essas imagens que me surgiam de inicio fixas o então detalhadas em dois, três, desenhos para dar como que uma noção de sequência?
Comecei então a pensar principalmente nos meios mecânicos, numa câmara de filmar, etc.
Foi muito difícil, evidentemente porque eu era muito, muito criança e não tinha isso à minha disposição.
Só mais tarde é que consegui, como amador, quando tive à minha disposição esses meios e depois de adquirir uma certa a vontade na movimentação das personagens, primeiramente duma maneira gratuita mais tarde integrado numa ideia geral, no contexto duma pequena história.
Comecei então a pensar que o amadorismo não me chegava e que precisava de entrar por meios mais eficazes.
Foi então quando, abandonando todas a minhas actividades que me eram apenas empecilhos para aquilo que eu queria (como sabes era funcionário do estado) e agarrando com a mão a maré que vinha de ser moda o desenho animado e de ver, por exemplo, o Mário Neves ter um sucesso com um filme que tinha acabado de lançar quando eu já tinha feito outros anteriormente, esse toque fez com que eu entrasse de cabeça no profissionalismo.
Então aí começaram a surgir problemas mais complexos, como atribuir à imagem uma mensagem, fosse ela publicitária ou fosse ela qualquer e também um outro problema, muito importante, o facto do desenho animado, principalmente publicitário que foi aquele a que eu me dediquei praticamente toda a vida, ser feito de ultracurtas metragens, o que obriga uma economia, uma gestão do movimento e do gesto extremamente atento.
Tem que se realmente administrar muito bem o tempo e dar uma grande atenção à montagem, de maneira que foi logo aí que comecei a ter uma noção mais exacta do material que tinha entre mãos.
Ao conseguir portanto efectivar o movimento de imagens que tinha à minha disposição ou que eu mesmo criava, e depois das usar para transmitir mensagens, fossem elas utilitárias ou simplesmente poéticas, o que foi muitas poucas vezes o caso, fiquei perante um mundo em que teria de estudar o movimento não só do ponto de vista mecânico, mas também como fazendo parte de um ritmo.
Isto foi essencialmente a primeira parte, o início, o arranque no que diz respeito à animação propriamente dita.

Sobre o valor das imagens

Estou convencido que dantes havia um entusiasmo muito grande pela imagem porque não havia a saturação de imagens que há hoje.
Hoje a imagem quase que cria uma espécie de indiferença.
Acho que não têm o impacto que tinham aqui há umas décadas, porque há um uso e abuso imoderado da imagem onde tudo se encadeia. Estamos saturados de imagens de todas a espécies e feitios, por todos os meios, cinema, televisão, a própria imprensa, que quase nos anestesiam perante os fenómenos.
No entanto não posso negar que as imagens têm hoje uma propriedade também muito grande por estarem muito em cima dos factos que elas abordam com violência num tempos extremamente curto que nós vemos como documentos.
Contudo, tenho a impressão que o prazer antigo da imagem que era um prazer mais…
Não sei se a palavra convém, digamos que…
Havia uma sensualidade da imagem que hoje está aplanada quase pelo uso excessivo dela.

Sobre o desenho

Eu acho que o desenho, seja ele obtido pela maneira que for, tem que estar sempre subjacente a ideia de desenho, de forma, de estrutura.
A maneira como ele é conseguido, já não me diz tanto, mas compreendo que há ainda quem mantenha o prazer do desenho, o prazer da mão, o prazer praticamente físico de desenhar.
Hoje existem outros métodos, que são de uma geração a que não pertenço praticamente (na verdade ainda pertenço porque ainda estou vivo), mas à qual não participo como dantes.
As imagens obtidas pelos recursos informáticos, estou convencido que são uma grande conquista.
É um mundo novo extraordinário, é um novo universo e que alguns, muitos, naturalmente encontrarão nisso um prazer inusitado que eu desconheço por que não tenho essa prática, mas… Por aquilo que me dizem, através do que sinto e vejo, quando é algo que me interessa, porque há muita imagem criada por computador que não me interessa de todo e que até me desagrada profundamente, na sua frieza, na sua esquematização, na sua perfeição.
Diz-se muitas vezes também que há pessoas que preferem, por exemplo, um violino a um órgão porque o violino é muito menos perfeito em matéria de som do que um órgão, é isso que eu sinto também em relação a este assunto.
A perfeição às vezes obtida, o alcance extraordinário realmente obtido, mas muitas vezes sem substância nem verdadeira arte, gela-me o sangue e eu, porque sou naturalmente um homem duma época dos anos vinte para cá, continuo a ter o prazer inusitado de pegar num lápis, num pincel e trabalhar com eles directamente.
Não obstante, não nego as novas práticas, digo somente que não vou pelo caminho hoje em dia de que vão quase os jovens todos pela simples razão de que jà sou, talvez…
Digamos, é tarde demais para mim…
Mas se eu tivesse mais tempo disponível, porque quero fazer outras coisas, não era pessoa que recusasse o convívio com os meios modernos de construção de imagens.

Sobre a poesia

A minha actividade poética, começou muito cedo também…
Começou pelos catorze anos…
Não vai ser fácil explicar, de maneira resumida, como é que nasceu uma actividade tão complexa e tão funda, por que para mim é a minha principal actividade.
O culto principal que eu tenho na minha vida artística é da poesia, não é o desenho. Gosto imenso do desenho, trabalho o desenho, tudo isso, mas a poesia é para mim a minha actividade de primeira.
Não quer dizer que seja melhor, nem que eu seja melhor em poesia do que no desenho, se bem que eu, confesso, acho que sim, mas no entanto a poesia par mim foi como que um complemento, porque há algo que é difícil de representar em modos objectivos como se faz com uma imagem parada, uma ilustração, com um filme.
Faltava-me uma outra dimensão que é aquela dimensão em que nós usamos a palavra como descritivo de algo que às vezes é quase indizível e em que nós atribuímos à palavra não o significado propriamente gramatical dela mas o significado necessário para num conjunto elas queiram dizer algo, aproveitando também o ritmo, o movimento que está essencialmente nessa palavras, oculto, mas que nós sentimos…
De maneira que a poesia nasceu em mim como que um acréscimo e também, tenho que dize-lo sem mistério nenhum, por que senti impulsos que me levavam a dizer. Não só a desenhar o que sinto, mas dizer o que sinto e esses impulsos eram tão fortes que eu comecei a pensar que tinha que fazer caso deles.
Foi aí que comecei a deixar a mão correr ao logo da linha escrita e digo isto sem qualquer pretensão esotérica, mas na verdade parecia-me muitas vezes que a mão era conduzida, e acontecia até que aquilo que eu dizia não tinha para mim uma lógica necessária, nem me preocupava ser lógico, o que precisava, para mim, era de ser, com esse discurso, eficaz, como uma espécie de sismo que tem que ser registado e depois, é claro, vem todo um trabalho de anos e anos em que uma pessoa vai aprendendo a dominar a linguagem, os seus valores e tudo isso.
Quando se chega a uma certa maturidade, a poesia tem por força, num desenhador ou num cineasta, que influenciar dum ponto de vista objectivo, a construção da imagem que é realmente representada duma maneira plástica. É por isso que eu muitas vezes, até num simples postal que eu faça para mandar a um amigo ou para comemorar uma efeméride, está lá não só o desenho ou a pintura, mas um poema também.
É um complemento.

Sobre a música

A música, nasci dentro dela.
Eu nasci com pessoas de família praticando musica o dia todo.
O meu pai que era um músico amador e minha mãe que me encaminhou para o piano fazendo-me estudar Bach e coisas assim que eu odiava nesse tempo, odiava como tarefa…
Depois com o convívio com as minhas irmãs que eram duas musicistas, professoras, que formaram muita gente, tu mesmo ainda fostes aluno duma delas, eu não podia de maneira nenhuma, a não ser que tivesse pouca sensibilidade, mas a verdade é que com a sensibilidade que tenho, fui sempre, digamos não instável mas muito sensível, pode-se dizer que era um sismógrafo ultra sensível às pequenas variações desde o mais pequeno cheiro, a mais pequena cor, a mais pequena forma.
Tudo isso ainda hoje, com perto de oitenta anos, o simples ambiente que se descreve, que se sente, que se toca com os sentidos é uma coisa que me faz balançar.
Ambiente que me foi criado por estar horas e horas a ouvir detalhadamente Chopin, Schumann, Beethoven, criou em mim, que tinha com certeza meios receptivos muito razoáveis para isso porque eu tive um irmão que isso para ele não contou, mas eu, para mim contou imenso e comecei a ter uma convivência íntima com a música, muito, muito íntima, uma convivência do tipo quase confissão…
Quando eu ouvia Bach ou Beethoven eles conversavam-se, eles estavam como que falando comigo e eu falava com eles, de certo modo, numa linguagem que não teria palavras, mas que teria imensas relações harmónicas, contrapontísticas, ou de escrita simplesmente melódica.
Isso veio criar em mim outro tipo de imagens, imagens que estavam relacionadas com o mundo sonoro.
Se bem que não sou muito partidário de música descritiva, música com temas algo literários, nunca fui disso, no entanto não posso evitar, quando ouço musica, criar e pensar em imagens em… Como hei-de dizer, em ambientes e posso também dizer que a poesia foi terrivelmente influenciada pela música, naquilo que ela tem de musical, de maneira que ela foi influenciada pela imagem, porque as minhas poesias, desde a minha juventude até há pouco tempo era essencialmente descrição de imagens. Depois passou a ser mais uma descrição intensa de emoções e de comoções.
Ainda hoje, às vezes, ponho-me a ouvir uma música para escrever um poema, extraio dela, por assim dizer, qualquer coisa, uma síntese que me leva a criar um estado de quase hipnose primária em que uma pessoa escreve quase insensivelmente algo que tem que ver com o que está sentindo do ponto de vista musical.
Talvez esteja a ser um bocado embrulhado nisto, mas é que esta matéria é complexa, bastante complexa nestas correlações.
Para mim, portanto desenho, movimento do desenho, poesia, música estão todas relacionadas e estou convencido que quem conhece aquilo que eu faço, mesmo superficialmente, reconhece isso. Que na parte da imagem há algo de musical, que na poesia há uma forte influência da música e que na música há uma forte influência dos meus tempos poéticos. Como sabes, estas minhas actividades estão muitas vezes compartimentadas, mas há passagens. Há zonas de passagem. Estão de tal maneira compartimentadas que tenho quase épocas, como as crianças têm às vezes a época do berlinde, do pião e do arco. Pelo menos na minha infância era assim.