Poética da Ilusão de Movimento

Conferência de José-Manuel Xavier

CINANIMA – 2021

Como é costume nestas ocasiões, vou começar por me apresentar.
Sou José Manuel Barata Xavier nativo da cidade de Lisboa onde vivi até aos 20 anos.
Depois abalei para França onde vivo há 56 anos.

Vou começar por dizer o seguinte: quando alguém me pergunta: que faz o senhor na vida? Tenho por hábito responder quase sempre: nada!
Por vezes também respondo: vivo, mas esta resposta mergulha a maior parte das pessoas num oceano de perplexidade.
Este tipo de respostas resulta essencialmente da minha misantropia crónica.
Junta-se a esta atitude o facto de que aquilo que eu faço há décadas, ser uma actividade intima, difícil de explicar aos outros e por vezes a mim mesmo.

Vou então falar de mim e tentar dizer o que faço.
Que faço? Componho e escrevo movimentos.
Este facto, ligado ao meu gosto imoderado pela poesia, levou-me até à Poética.
Não sei se todos sabem o que é a Poética mas vou partir do princípio que sabem.

Retirei do estudo da Poética a substância que me permite falar hoje da poética do movimento, mas…
Como o movimento ao qual me dedico desde há muito tempo não é mais de que uma mera ilusão vou então falar da poética da ilusão de movimento que ocupa em permanência o meu espírito, o meu corpo e o meu tempo.

A poesia é a minha forma de linguagem predilecta.
A poesia agrada-me porque me permite pensar e dizer as coisas doutra maneira.
Na literatura em língua portuguesa, Florbela Espanca e Irene Lisboa ocupam um lugar privilegiado no meu coração.
Os diversos movimentos emocionais que os poemas destas autoras suscitam em mim, empolgam a minha própria criação.
Quando as leio fico sempre com uma vontade voraz de também escrever poesia.

Quando decido escrever um poema, utilizo de preferência uma caneta por que a tinta que sai do aparo permite-me sentir e seguir o movimento do desenho das letras e também de as ligar umas às outras até elas constituírem uma palavra.

Depois, o movimento da minha mão, dos meus dedos, desenha, quase sempre sem pressa, uma outra palavra e mais outra e mais outra até obter entre elas o bom entendimento necessário à criação de uma frase que transmita, de preferência, mais um sentimento ou uma emoção do que um sentido prosaico.

Quando escrevo um ou vários movimentos nas páginas de um caderno, procedo exactamente da mesma maneira: começo por desenhar com um pincel uma primeira figura sobre a primeira página, depois uma outra na segunda página que deduzo da primeira, depois uma terceira figura que deduzo da precedente e assim de seguida até preencher quase todas as páginas do caderno.
Quando por fim o folheio, os meus olhos lêem e o meu cérebro vê a ilusão que escrevi.

Le plaisir du Mouvement – I :
https://www.youtube.com/watch?v=WtpVySbMzZA
Le plaisir du Mouvement – II :
https://www.youtube.com/watch?v=6lcMov6abRc

Disse que os meus olhos lêem e que o meu cérebro vê porque na verdade é no cérebro que a ilusão de movimento nasce.
A ilusão de movimento é a resposta que o cérebro dá às coisas que ele não entende.
Dei a esta construção mental um nome, o Outro Movimento.

O Outro movimento distingue-se do movimento Universal que anima as estrelas e os planetas, que dá forma e aspecto à terra e a tudo o que ela contém e a tudo o que nela vive.
O Outro Movimento é um artefacto.
Imagino-o e confecciono-o de forma a criar a ilusão de que ele existe, o que não é verdade.
O outro movimento é um puro produto do pensamento, criado pelo pensamento e destinado a ser interpretado pelo pensamento.

O Outro Movimento não existe fora de mim como aquele que anima os seres e as coisas do mundo que me rodeiam.
O Outro Movimento aparece e desaparece na minha imaginação ao sabor dos artifícios que o suscitam.
Ele surge na minha cabeça e desenvolve-se sob a forma de ilusões.
As coisas que o Outro Movimento parece expressar e que se manifestam através dele dependem inteiramente das minhas decisões quando as escrevo ou as componho.

Uso o Outro Movimento para criar espanto, emoções, para tornar visíveis coisas improváveis, para mostrar coisas efémeras que não existem.
Tudo isto faz do Outro Movimento um fenómeno quase mágico, totalmente ilusório, que me agrada imenso, sobretudo por ele não estar sujeito a nenhuma força, nenhuma lei, nenhuma regra.

O Outro movimento é o território da total liberdade.
Brinco com ele para criar múltiplas ilusões que me reconfortam e através das quais tento transmitir aos meus semelhantes diversos sentimentos.

Danse des signes :
https://www.youtube.com/watch?v=-CcpY0Xmyfs
P & M :
https://www.youtube.com/watch?v=xY8KL52tbJc
Un coin pour dormir :
https://www.youtube.com/watch?v=mq6LNULhZYk

Escrever e desenhar são coisas idênticas e como são idênticas e que os instrumentos com que se desenha ou se escreve são iguais, eu retiro um prazer inefável em desenhar com palavras e em escrever com imagens.

As palavras sempre me ajudaram a escrever e a desenhar ilusões.
Quando as disponho numa determinada ordem, o que resulta deste arranjo permite-me imaginar uma infinidade de coisas: linhas que ondulam, que se movem e que se desfasem, traços que surgem e que se transformam em coisas que aparecem e que desaparecem, que tremem e que dançam ao sabor das minhas fantasias.

Mas o mais belo é que todos este signos, todos estes elementos gráficos de escrita, permitem-me traçar no tempo e no espaço movimentos únicos, genuínos, que não existiam antes de eu os ter criado.

Choses qui arrivent 1 – 2 – 3 – 4 :
https://www.youtube.com/watch?v=6sdK73Kf6BY
https://www.youtube.com/watch?v=EIs-F-bBqGw
https://www.youtube.com/watch?v=hCtK4tJzNR0
https://www.youtube.com/watch?v=SJ4KogQT2_c

Graças à Poética descobri que as figuras de estilo da linguagem e as figuras da imagem são idênticas.
As figuras de estilo, absorvia-as e agora, transformadas em intuições, elas vivem dentro de mim.
São elas que alimentam a minha imaginação.
Quando me aventuro no maravilhoso território do Outro movimento, a metáfora, a metonímia, a anáfora, o oximoro e tantas outras mais, são as minhas fiéis companheiras.
Elas são o conteúdo de tudo o que faço, o assunto de tudo o que mostro.
São elas que desencadeiam as acções de todas as figuras que parecem viver no branco do papel, à superficie do ecrã.

Contudo, a criação destas coisas continua a ser para mim um mistério.
Quando me interrogo sobre este mistério, rebobino o fio da minha memória até à minha infância para tentar saber donde me vem esta paixão constante e arrebatada pelo movimento.
A imagem imediata que me vem à menta é a do movimento do corpo de um caracol a sair da sua concha.

Devia ter 6 anos quando a fascinante viscosidade e a extrema lentidão da sua locomoção incentivaram a minha curiosidade por ele e pelo ambiente que o rodeava,
Creio que foi após o ver partir, lentamente, muito lentamente, deixando no solo o rasto prateado da sua trajectória que me tornei contemplativo e sensível ao movimento das coisas e às coisas em movimento.

O mundo que nos rodeia é duma beleza extraordinária, mas a maioria das pessoas não lhe prestam atenção nenhuma.
A arte em geral e a poesia em particular são as mais perfeitas maneiras de tentar dizer o sentimento de beleza que emerge de tudo o que se vê e de tudo o que se sente.
Qualquer criação, grande ou pequena, reside na vontade de transmitir este sentimento.

A poética, que trata do conjunto de procedimentos que entram na composição dum poema, ajudo-me a manter viva esta vontade, diria mesmo, a necessidades de criar e de transmitir sensações, emoções e sentimentos através do Outro movimento.
Quando falo de poética da ilusão de movimento falo portanto da maneira que me permitem atribuir a uma figura, a uma imagem a tal aparência de vida que, como diz San Juan de la Cruz, encanta e enamora.

A palavra enamora, remete a minha memória para a minha adolescência quando li, traduzida em português, a peça de William Shakespeare, Romeu e Julieta.
Apesar de ainda ser um catraio senti, mais do que percebi, que existem livros que nos transformam através da beleza das palavras e outros que não servem para nada, somente para matar o tempo, como dizia o meu mestre Alexandre Alexeïeff.

Desde esse dia, passei a ser considerado pelas pessoas do meu meio ambiente como um pequeno snobe, um pretensioso, um pedante, pelo facto de preferir Shakespeare a Jules Verne e os desenhos de William Blake às histórias em quadradinhos.

Todas estas considerações jamais me desviaram do meu caminho.
O meu caminho, que se parece mais com um rio movimentado do que com chão firme, permitiu-me compreender que a Poética não é somente um conjunto de procedimentos.
A Poética é, para mim, uma atitude, uma maneira de ser e de estar (como dizia o meu mestre e amigo Fernando Pessoa) e por consequência uma maneira de pensar, de dizer e de mostrar as coisas e o movimento das coisas poeticamente.

Eu não faço o que faço para adquirir estatuto, fazer filmes e ser conhecido.
Como diria a minha avó; Deus me livre!
Eu componho e escrevo movimentos que não existem para interrogar os mistério do movimento das coisas, o outro lado das coisas.
Os filmes e as experiências que faço são apenas a parte visível desta atitude, desta sede de beleza, mas o mais importante a dizer é que eu faço filmes e escrevo livros para tentar saber quem sou.

Em 2003, escrevi em francês um livro intitulado « La Poétique du Mouvement suivi du Carnet de l’animateur » onde dei a conhecer aos meus amigos franceses o movimento que anima a poesia de Fernando Pessoa.
Em 2007, escrevi em português um outro livro intitulado « Poética do Movimento » onde detalhei todos os dogmas, postulados e procedimento que utilizo para compor e escrever poeticamente o Outro Movimento.
Em 2018, este livro foi reeditado no Brasil pelo Núcleo de Cinema de Animação de Campinas numa versão revista e substancialmente aumentada e com um novo título: « Poética da ilusão de movimento ».
No mesmo ano, escrevi um novo livro intitulado « O movimento das coisas, talvez… » que relata serenamente a minha maneira de ver, de captar e de sentir de todas as maneiras o movimento.

Todos estes textos se confundem com o meu trabalho.
Na « Poética do Movimento », por exemplo, escrevi coisas que me serviram para mais tarde: « O espaço de representação duma animação poética deve-se distinguir do espaço de representação duma animação prosaica. As suas características devem privilegiar o movimento das coisas figuradas compostas e dispostas nele de maneira singular » e logo a seguir acrescentei: se no texto poético, o branco é o sinal gráfico da pausa ou do silêncio, sinal aliás natural na medida em que a ausência das palavras simboliza a ausência de voz, a superfície branca da representação deverá significar portanto : ausência, pausa ou silêncio.

O filme 28, que relata as peripécias do nosso múltiplo Poeta e do seu meio de transporte favorito e o filme « Várzea », realizado a partir dum poema e duma composição original para piano do meu Mestre e amigo Armando Servais Tiago, seguem à letre estes postulados.

28 :
https://www.youtube.com/watch?v=UWY9hdepUpY
Várzea :
https://www.youtube.com/watch?v=ZwU6gGQJliY

No meu caminho para as ilusões descobri, depois da melodia das palavras, os sons da música que estudei e pratiquei, não para me tornar músico, mas por prazer, como tudo o que faço, e também para tentar elucidar os mistérios da criação musical.

Por vezes, os movimentos da música revelam-me coisas inesperadas.
Convidado pelo meu amigo Fernando Galrito, expus na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha meia dúzia de coisas que se mexem, que se transformam, que vibram e que aparecem e desaparecem em ecrãs dispostos verticalmente.
Intitulei estas coisas « 6 essais sur le mouvement ».
Se o titulo fosse em português talvez lhes tivesse chamado « 6 exercícios sobre o movimento » em homenagem a Domenico Scarlatti.

Antes de prosseguir o que desejo dizer-vos e mostrar-vos, permitam-me um desabafo: a música é um território de confusões e de equívocos.
Quando falo de música a alguém, há fortes chances que o meu interlocutor oiça dentro dele um fado e eu, uma sinfonia de Bruckner.
Este facto leva-me a crer que eu represento para a maioria das pessoas a figura do « mau de fita » dos filmes americanos que, como se sabe, são maus porque falam francês, ouvem somente música clássica, bebem « champagne » ou vinho em copos grandes e andam bem trajados.
Os outros, os « bons da fita », falam exclusivamente americano, ouvem música pop, bebem cerveja à garrafa, e metem sobre a cabeça bonés ao contrario.
Fim do desabafo.

6 Essais sur le mouvement :
https://www.youtube.com/watch?v=1tntroVv3tY

3 dos « 6 essais sur le mouvement » foram-me inspirados por movimentos musicais:

O primeiro dos seis ensaios foi-me inspirado por alguns aspectos da obra para piano de Maurice Ravel « Une barque sur l’océan » que afeiçoo muito; a fluidez e o brilho dos seus múltiplos motivos cintilantes que se misturam como perfumes.

O terceiro foi-me inspirado pelo início do primeiro quarteto de Penderecki com os seus motivos rítmicos insistentes e as suas sonoridades ao mesmo tempo surdas e ásperas que parecem provir de uma moita cheia de mistérios.

O quinto foi-me inspirado pela peça para cravo «Les Maillotins» de François Couperin, com a sua trama sonora alegre e saltitante, seca e granulosa como uma escrita rápida à pena sobre papel áspero, repleta de emendas.
Vou agora mostrar-vos, pela primeira vez em público, estes três ensaios acompanhados das músicas que os suscitaram.

3 Essais sur le mouvement :
https://www.youtube.com/watch?v=viQSxD0vTec

Se me permitem, vou falar um pouco mais do processo da composição do movimento do primeiro dos 6 ensaios porque acho que ele revela de maneira exemplar a minha atitude de poeta ilusionista.

Se eu fosse outro e sobretudo se eu fosse apreciador de gentis filmes de animação e desconhecedor de música talvez me tivesse apoiado no título « Uma barca no Oceano » em vez de me apoiar na estrutura dinâmica da música de Ravel.

Teria então feito uma imagem de tipo marina com uma bonita embarcação situada ao longe, perto do horizonte, sem esquecer o reflexo dela espelhada nas ondas.
Felizmente não sou assim.

Peguei numa folha de papel A4, coloquei-a à minha frente como para escrever uma carta ao Tesouro Público e comecei por desenhar, com um pincel, linhas ligeiramente irregulares, por vezes interrompidas e aproximadamente paralelas.
Depois, nesta espécie de pauta musical de quinze linhas, pintei com um pincel por cima e por debaixo de cada uma delas, aqui e ali, ao acaso, manchas negras.
Olhei para o resultado e, se me recordo, parei e foi comer qualquer coisa.

Quando regressei à minha mesa de trabalho e olhei para o que tinha feito, não pude deixar de pensar que a estética a preto e branco da imagem que tinha à minha frente provinha certamente do meu gosto imoderado pelo teclado dos pianos que coincide maravilhosamente com o conceito de página branca salpicada de manchas negras que significam para mim, sons, pausas e silêncio…

Quando terminei as 20 fases necessárias à fluidez do movimento de vai-e-vem das manchas negras, que dispus segundo o ritmo e a intensidade da música de Ravel, fechei os olhos e deixei esmorecer na minha mente os sons do piano até eles desaparecerem.
Aquilo que se vê no primeiro ensaio dos « 6 essais sur le mouvement » são portanto os rastos do movimento da música de Ravel.

Então e a música? Perguntam-me os adeptos do audiovisual.
A música de Ravel ficou e está onde deve estar, quieta, deitada nota por nota na sua partitura por que a música de Ravel, como todas as músicas que se dirigem à mente, não podem servir de papel para forrar ilusões.

O caminho da minha vida, que me leva a fazer o que faço, corre, como disse há pouco, como um rio onde mergulho par buscar no fundo da minha memória coisas esquecidas que trago para superfície, para reflectir, deixar pairar e depois erguer, o mais alto possível, nos céus do onirismo onde elas se perdem de novo.

Antes de realizar o filme « A Criação », que vai ser apresentado neste festival e que mais do que qualquer outro sintetiza todos os meus conceitos e a minha doutrina sobre a poética da ilusão de movimento, criei um outro, mais curto, que tem por título: « Anjos e Arcanjos, preludio à criação ».
Considerem, por favor, este ensaio como um conjunto de esboços, ou se preferirem como um compêndio de imagens e de movimentos preparatórios para o filme « A Criação ».

Anges et Archanges, prélude à la Création :
https://www.youtube.com/watch?v=UqbJyacHgyg

Como no filme « A Criação », « Anjos e Arcanjos » começa com o movimento de um traço.
Quando se traça algo sobre um suporte, o gesto da mão, que é um movimento, existe antes, durante e depois da figura estar concluída.
O traço, os traços, os traçados, as linhas, os contornos, as texturas, são sempre o resultado de gestos.
No filme « Anjos e Arcanjos » tal como no filme « A Criação », as figuras da imagem são aquilo que se vê e o movimento que parece dar-lhes vida é aquilo que se sente.
Foi isto que eu expliquei, um dia, na minha oficina ao meu amigo Fernando Pessoa.
Permitam-me que vos leia uma passagem do meu livro « O movimento das coisas talvez… »:

O interesse que o meu amigo Fernando tem pelos meus instrumentos de trabalho é mesmo espantoso.
Há uns dias atrás, surgiu a meu lado e, depois de ter observado minuciosamente todas as minhas lapiseiras, penas e pincéis, perguntou-me:
‒ Que está a fazer, José?
‒ Estou a animar.
‒ Ah ! E em que consiste animar ?
‒ Crio movimentos.
‒ Ah ! Julgava que o senhor desenhava.
Expliquei-lhe então que, para criar movimentos, é preciso começar por desenhar.
‒ Conte-me isso em pormenor.
‒ Não sei se consigo, mas diria que o desenho é o que se vê e o movimento é o que se sente.
‒ Não posso tentar criar um ? perguntou-me ele cheio de entusiasmo.
‒ Com prazer. Aqui tem aquilo de que precisa.
Para não o incomodar, deixei-o sozinho e fui à cozinha buscar uma gulodice ao frigorífico e preparar o jantar. Uma hora depois, quando voltei para a oficina, o Fernando tinha realizado assim, sem preparação, uma animação deslumbrante.
Um novo heterónimo acabava de nascer.

É nisto que consiste o essencial da Poética da ilusão de movimento.
Dar ao movimento o poder de exprimir e de transmitir as sensações, as impressões, as emoções e os sentimentos que todos nós sentimos quando as figuras se movem sobre um ecrã, sobre as páginas de um caderno ou sobre a face em cartão de um Fenaquitiscópio.

As imagens e as figuras da imagem, das quais toda a gente faz grande caso, são meras representações que dizem pouco ou quase nada sobre o que são.
Une traço não representa nada mais que ele mesmo.
Só um movimento apropriado permitira de o identificar enquanto ondulação duma vaga, haste curvada pelo vento, animal rastejante ou voluta de fumo.

No filme « Anjos e Arcanjos » o movimento conjuga diversos tipos de traços para que eles evoquem entidades improváveis que voam, que se deslocam, que se transformam, que se reunem para nos transmitir a estranha sensação onírica do estado de elevação.
« Anjos e Arcanjos » não conta nada, mostra.

A razão, o porquê do facto de eu nunca contar e preferir mostra vem-me da minha infância.
Recordo-me de que quando a minha avó me deitava com ternura na cama e que me aconchegava bem para eu não ter frio, ela sempre me perguntou: queres que te conte uma história para adormeceres? eu respondia-lhe logo: não avó estou cheio de sono.
Era mentira, o que eu cria era ficar sozinho, no meu mundo, para pensar nas minhas coisas.

Disse-vos há bocado que a poesia é a minha forma de linguagem predilecta e que a poesia me agrada por me permitir pensar, dizer e fazer as coisas doutra maneira, mas doutra maneira em relação a quê?
À prosa, bem entendido.
A prosa tem serventia para contar histórias, redigir documentos administrativos, teses, decisões de justiça, mandatos de captura, sentenças, romances e novelas e tantas outras coisas que nunca me interessaram.

A poesia não serve para nada, mas dado o facto de que eu vivo nela e que ela vive em mim, que com ela brinco e que com ela sinto, a poesia é-me indispensável.
Os outros sempre me tentaram impor sem sucesso o mundo prosaico em que vivem.
Eu não imponho nada a ninguém.
Vivo com as minhas ilusões e com o meu amor pelo movimento e, quando me pedem, até os compartilho com todos aqueles que têm a paciência de me ouvir.

Resta-me agora agradecer a vossa atenção e responder a questões eventuais.
Muito obrigado.

José-Manuel Xavier
Argenton-sur-Creuse 2021