A maioria das pessoas que me ouvem falar de Armando Servais Tiago, do mestre e amigo que ele foi para mim, talvez não se deem conta do facto de eu sou o herdeiro de tudo o que ele não pode realizar.
Neste sentido, a transmissão oral, foi fundamental entre nós.
Foi com palavras e a través delas que Armando Servais Tiago me transmitiu tudo que me era necessário para que, um dia, mais tarde, eu pudesse expelir o que tinha dentro de mim e, mais além, de explorar os caminhos que ele-mesmo não ousou tomar.
Em cada um dos nossos férteis diálogos eu não via nos seus propósitos o que ele fazia ou era, mas sim aquilo com que ele sonhava.
Armando Servais Tiago, de tanto hesitar, quase que destrui tudo nele.
Foi um milagre que a sua poesia tenha resistido ao medo que a criação lhe metia.
As gentes do seu meio profissional, que sem irem mais longe do que a ponta dos seus narizes, viam somente nele as migalhas do seu ofício sem nunca se aperceberem do imenso valor que ele ocultava.
Diga-se de passagem que o meio profissional onde Armando Servais Tiago se afogou, sempre ignorou se não tudo, quase tudo que exige delicadeza e subtileza.
Para compreender o que se esconde por detrás de um homem ou de uma mulher portadores de sonho é necessário ultrapassar as evidências.
Isto só é possível prestados-lhe uma extrema atenção.
É escusado dizer que, nos nossos dias, eu sou a única pessoa que tenta manter viva a sua arte poética e os movimentos do seu pensamento.
Quando ele e eu trabalhávamos juntos, as coisas que fazíamos para a publicidade, não tinham importância nenhuma. Não eram essas o nosso ponto de encontro. Era dos sonhos que trocávamos que nascia o nosso entendimento. Do desejo permanente de arte e nesses tempos havia muita arte no nosso redor, inclusivamente na dita animação.
Norman McLaren, Jiri Trnka, Alexandre Alexeïeff, Lotte Reiniger, ainda eram vivos e ainda faziam filmes inspirados.
Norman McLaren, inspirado pelo cinema experimental, tinha a suprema audácia de fazer filmes com linhas, manchas, tracejados e riscos em movimento.
Jiri Trnka, imérito ilustrador, inspirava-se de Shakespeare et de Giovanni Boccaccio para criar obras inigualáveis de encanto e de prazer.
Alexandre Alexeïeff, inspirou-se de Moussorgski e de Gogol para realizar filmes duma extrema singularidade e Lotte Reiniger adaptou obras de William Thomas Beckford e de Mozart para realizar filmes e imagens duma magnífica virtuosidade e duma beleza incomparável.
Que contraste com o que faz hoje.
Armando Servais Tiago, transmitiu-me o gosto pelas artes e a poesia que ele sempre desejou alcançar e nunca pela banda desenhada ou pela caricatura que ele apreciava, que fez e fazia.
Compreendi, graças a ele, que a vida é breve e que não há tempo para o banal.
Aprendi, a través dos seus propósitos, a descobrir os inúmeros esconderijos da beleza. Um deles é a sua poesia.
Servir a memoria de Armando Servais Tiago é criar algo a partir da sua obra poética.
É o que tenciono fazer, que já fiz, e que voltarei, sem dúvida, a fazer.